A FIGURA DO NOVO EMPREGADOR E SUA RESPONSABILIDADE CIVIL

A figura do novo empregador e sua responsabilidade civil
pelo descumprimento das cláusulas especiais por parte do empregado.

 

O cerne da problemática posta em discussão no presente artigo reside na extensão dos deveres da boa-fé objetiva, de lealdade e solidariedade a terceiros que não figuraram como parte no contrato de trabalho que estipulou cláusula especial, mas que podem no mínimo ser coniventes com o seu descumprimento em prol do benefício econômico. Eis que surge a figura do novo empregador responsável pelo descumprimento do pacto assumido pelo empregado.

Por certo que ao se estabelecer cláusula especial no contrato de trabalho, o empregador estipulante visa resguardar seus legítimos interesses, de modo a evitar que informações privilegiadas adquiridas pelo empregado em razão do contrato de trabalho sejam expostas às empresas concorrentes, o que lhe traria severos prejuízos.

Nesta esteira, necessário analisar a responsabilidade civil do novo empregador nos casos de descumprimento da cláusula ajustada por parte do empregado, ainda que aquele não tenha figurado como parte na pactuação da cláusula especial.

Assim, recaímos na denominada responsabilidade civil de terceiros, sendo que Nelson Nery Junior[1] nos traz valioso ensinamento sobre o tema:

 

“A primeira questão que se põe é saber como extrair da ausência de um vínculo negocial o direito de exigir um comportamento de alguém com quem nunca se contratou. Sabido que as obrigações nascem da lei, do negócio jurídico, do ato ilícito e até mesmo do ato lícito, seria o caso de se indagar o que tem o condão de criar obrigações para outrem. A prática desleal atenta contra o princípio da livre iniciativa e se apresenta como repulsiva e condenável sob o ponto de vista da lealdade das relações de mercado. ‘A violação ao dever de proteção é igualmente visualizada quando um terceiro contribui para o descumprimento de uma relação obrigacional em curso, mediante a realização de um segundo contrato – incompatível com o primeiro – frustrando as finalidades do credor por propiciar o inadimplemento e consequente destruição da obrigação inicial’ (Nelson Rosenvald. Dignidade humana e a boa-fé no Código Civil, SP: saraiva, 2005, pp. 113/114).”

 

 Conclui Nelson Nery, que “paira sobre todos um dever de se abster de práticas que comprometam os direitos negociais de outrem.”

De toda sorte, o princípio da boa-fé objetiva, previsto no 422 do Código Civil, que se divide no dever de proteção e lealdade,[2] e que possui força de cláusula geral e constitui fonte de direito e obrigações deve ser aplicado perante terceiros que ao praticarem certos atos, acabem por tornar ineficaz direito constituído por outrem mediante contrato celebrado.

O novo empregador, ao contratar o empregado, estando ciente da existência de cláusula restritiva, acaba por adentrar na esfera de direitos de terceiros, qual seja, do antigo empregador, tornando ineficaz o direito constituído pela cláusula celebrada.

 No direito brasileiro positivado, não há menção expressa quanto à responsabilidade civil de terceiros no tocante ao descumprimento de cláusulas especiais no contrato de trabalho, surgindo a necessidade de se averiguar a postura do direito comparado sobre o tema.

A legislação espanhola traz expressamente a possibilidade de se firmar cláusula de não concorrência, bem como cláusula de permanência no contrato de trabalho, é o que se extrai do artigo 21 do estatuto de los trabajadores[3].

No intuito de resguardar os direitos das empresas, bem como a ordem econômica, além da possibilidade de pactuação das cláusulas restritivas, desde que observados os requisitos de validade, ainda o ordenamento jurídico espanhol possui legislação prevendo os atos de concorrência desleal, intitulada como “Ley de competencia desleal, Ley 10 enero 1991, Num 3/1991”[4]

Referida lei, em sua cláusula geral, trata como desleal toda conduta contrária à boa-fé objetiva, e traz uma séria de atos ou comportamentos considerados como desleais para a concorrência, incluindo-se a conduta de indução do trabalhador ao descumprimento contratual.

Os atos de indução à infração contratual estão previstos no artigo 14, item 1, da Lei de Concorrência Desleal espanhola, sendo considerados desleais os atos praticados por uma empresa no intuito de induzir o trabalhador a descumprir os deveres básicos do contrato de trabalho havido para com o competidor, ou seja, o atual ou o antigo empregador. Nesta esteira, vale transcrever o disposto no mencionado dispositivo legal: “1. Se considera desleal la inducción a trabajadores, proveedores, clientes y demás obligados, a infringir los deberes contractuales básicos que han contraído con los competidores.”[5]

Ainda, o item 2 do artigo 14 da lei de concorrência desleal da Espanha expõe os requisitos para que haja o ato desleal, sendo imperioso que o novo empregador,  ou o beneficiário da infração contratual tenha conhecimento da restrição, bem como que aquela constitua difusão ou exploração de um segredo industrial ou empresarial e vise a eliminação ou prejuízo de um concorrente do mercado. Vejamos o disposto:

 

“Artículo 14, 2. La inducción a la terminación regular de un contrato o el aprovechamiento en beneficio propio o de un tercero de una infracción contractual ajena sólo se reputará desleal cuando, siendo conocida, tenga por objeto la difusión o explotación de un secreto industrial o empresarial o vaya acompañada de circunstancias tales como el engaño, la intención de eliminar a un competidor del mercado u otras análogas.”[6]

 

 De acordo com a legislação em estudo, a ocorrência de ato desleal possibilita ao lesionado o ajuizamento, dentre outras, de ação de obrigação de não fazer, ação de perdas e danos e ação de enriquecimento ilícito, conforme disposto no artigo 18 da Lei de Concorrência Desleal da Espanha. Ainda, a legitimidade passiva das referidas demandas pode ser tanto do beneficiário quanto do trabalhador, a depender do tipo de ação a ser intentada.

Ao analisar a Jurisprudência[7] do “Supremo Tribunal de Lo Social e do Supremo Tribunal de Lo Civil da Espanha” sobre a aplicabilidade da responsabilidade de terceiros pela infração contratual, em especial pela indução de trabalhadores a quebrarem os deveres básicos dos contratos de trabalho e suas cláusulas acessórias, temos que o Judiciário Espanhol reconhece a legitimidade dos pleitos, todavia, condicionando a existência de prova robusta da indução do novo empregador ao descumprimento contratual por parte do empregado.

Nos excertos estudados não se verificou a condenação do novo empregador pelo descumprimento contratual entre empregado e antigo empregador, todavia, a ausência de condenação se deu pela falta de prova robusta de que houve indução por parte do novo empregador, bem como que este tinha pleno conhecimento da existência de cláusula de não concorrência decorrente do contrato de trabalho anterior.

Não obstante, da análise dos fundamentos de direito da jurisprudência espanhola, verifica-se que embora a lei não exija como pré-requisito da concorrência desleal a existência de cláusula de não concorrência no contrato de trabalho, esta é de suma relevância para a possibilidade de responsabilização, no intuito de se demonstrar a relevância do segredo industrial ou empresarial que se pretende a tutela jurisdicional, bem como a notoriedade do conhecimento da restrição.

Ainda, processualmente, observa-se que houve uma distinção de competência jurisdicional para análise do pleito, uma vez que houve a remessa do pleito em face da empregada para o “Tribunal de lo social” e contra o novo empregador a ação tramitou perante o “Tribunal de lo civil”. Em se tratando do ordenamento jurídico brasileiro, temos que a nosso ver, a competência para julgar a demanda que vise a responsabilização solidária, que por sua vez se funda no descumprimento de um contrato de trabalho, ou de uma cláusula acessória de um contrato de trabalho, seria da Justiça do Trabalho, haja vista a Emenda Constitucional 45/2004.

Observa-se que pela legislação espanhola, a responsabilidade de terceiros pelo descumprimento dos deveres do contrato de trabalho, além de se constituir infringência ao princípio geral da boa-fé objetiva, constitui ato de concorrência desleal. No que tange à concorrência desleal, o ordenamento jurídico pátrio conferiu status constitucional ao instituto, conforme disposto no artigo 170, IV da Constituição Federal.

Reza o artigo 170 da Constituição Federal de 1988, que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

Referido dispositivo constitucional nos traz ainda, um rol de princípios que norteiam às atividades econômicas, sendo que o inciso IV prevê a livre concorrência. O princípio da livre concorrência é assumido como garantia institucional da ordem econômica.[8]

Nelson Nery Junior explica que a projeção no mercado das diferentes e autônomas iniciativas é tida como a forma mais adequada de racionalização econômica, porque, em razão da diversidade e competitividade de ofertas, cria-se um terreno favorável para um progresso econômico e social em benefício dos cidadãos.

Assegurar a livre concorrência é um dever do Estado para que se garanta uma ordem econômica justa, bem como o crescimento e desenvolvimento do país. Tem-se que a concorrência desleal, além de prejudicar diretamente a parte lesionada pelo ato desleal, reflete na vida de todos os cidadãos, em especial nas relações de consumo.

Percebe-se que a colaboração do novo empregador no descumprimento da cláusula restritiva pactuada, além de gerar a ineficácia do direito constituído pelo antigo empregador, bem como lhe trazer prejuízos econômicos, acaba por afrontar toda a ordem econômica, e de forma reflexa prejudicar o progresso econômico e social de todos os cidadãos.

Assim, torna-se imperiosa a responsabilização do novo empregador pelo descumprimento da cláusula pactuada, ante os impactos sociais e econômicos advindos da condutada desleal, e sobre o tema, nos esclarece Estevão Mallet:

 

“A cláusula de não-concorrência, quando prevista em contrato de trabalho, vincula apenas empregado e empregador. Para outras empresas ou empregadores constitui res iníer alios, o que não exclui a possibilidade de surgimento de responsabilidade de terceiros, responsabilidade que será, todavia, de natureza aquiliana e não contratual. A diferença é importante porque toma necessária, não havendo previsão de responsabilidade objetiva, a demonstração de culpa do terceiro, não exigível no caso de inadimplemento contratual, em que ao contratante inadimplente é que se atribui o ônus de provar a ausência de culpa, em virtude da ocorrência de caso fortuito ou força maior.”

 

Tem-se que a responsabilidade civil do novo empregador trata-se de responsabilidade extracontratual, na qual resta a necessidade de demonstração da culpa do agente, que no caso, recai sobre a ciência da existência da cláusula restritiva.

Nesta senda, Célio Pereira Oliveira Neto[9] nos traz a necessidade da ciência do novo empregador:

 

“A vinculação da cláusula de não concorrência abrange apenas empregado e empregador. Porém, é possível vincular também o novo empregador do empregador compromissado. Para tanto, o antigo empregador deve dar ciência inequívoca ao novo empregador da limitação imposta por força da cláusula de não concorrência, ficando este, a partir de então, solidariamente responsável como o empregado, nos termos do art. 942, parte final do CC.”

 

A ciência do novo empregador da cláusula restritiva, segundo Mallet, pode ser realizada por meio de notificação do antigo empregador. A nosso sentir, aderindo ao posicionamento de Oris de Oliveira, citado por Célio Pereira Oliveira Neto[10], a anotação na CTPS do empregado, no campo de anotações gerais, seria suficiente para a ciência do novo empregador e consequentemente sua responsabilidade solidária pelos danos causados diante o descumprimento da cláusula celebrada com o antigo empregador, em que pese tal atitude possa gerar risco de pleito de dano moral.

Ao adentrarmos na esfera de cláusula de permanência, a legislação da República Dominicana já prevê expressamente a responsabilidade solidaria do empregado e novo empregador pelo descumprimento, é o que se lê da parte final do artigo 75 do Código do Trabalho da República Dominicana: 

 

“Si el trabajador ejerce el desahucio contra un empleador que ha erogado fondos a fin de que aquél adquiera adiestramiento técnico o realice estudios que lo capaciten para su labor, dentro de un período igual al doble del utilizado en el adiestramiento o los estudios, contado a partir del final de los mismos, pero que en ningún caso excederá de dos años, su contratación por otro empleador, en ese período, compromete frente al primer empleador la responsabilidad civil del trabajador y además, solidariamente, la del nuevo empleador.”[11]

 

Pelo exposto, observa-se que outros ordenamentos jurídicos encontram-se avançados na matéria de responsabilização civil de terceiros em face da existência de cláusulas especiais nos contratos de trabalho, e não obstante  se tratar de legislação estrangeira, temos que todas se pautam  no princípio da boa-fé objetiva, o qual também é recepcionado no Brasil como princípio geral de direito.

Assim, em que pese o ordenamento jurídico brasileiro não traga expressamente a responsabilidade civil do novo empregador, diante da lacuna legal, possível a aplicação por analogia do direito comparado, como prevê o artigo 8º da CLT, no intuito de resguardar os legítimos interesses dos empregadores, bem como manter a ordem econômica e a função social do contrato.

 

AUTOR:
Dr. Marcos Vinícius Zancan Mobile
Advogado Sócio Bardal & Mobile



[1]
NERY JUNIOR, Neslon. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado.  10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 645- 646

[2] NETO, Celio Pereira Oliveira Neto. Liberdade de Trabalho e a Cláusula de Não Concorrência. ALMEIDA, Renato Rua de (Coord.). Direitos Laborais Inespecíficos: os direitos gerais de cidadania nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2012. p. 70.

[3]Disponível em:  <https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-7730> – Acesso em abril de 2015.

[4]Disponível em:  <http://www.onnet.es/ley0014.htm> – Acesso e.m abril de 2015

[5] Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/WEBTEXT/37817/64929/S94ESP01.HTM#t1c2>  – acesso em Abril de 2015.

[6] Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/WEBTEXT/37817/64929/S94ESP01.HTM#t1c2>  – acesso em Abril de 2015.

[7]Jurisprudência Estrangeira. Roj: STSJ M 12607/2013 – ECLI:ES:TSJM:2013:12607 – Id Cendoj: 28079340012013100716 – Órgano: Tribunal Superior de Justicia. Sala de lo Social Sede: Madrid Sección: 1 Nº de Recurso: 6181/2012 Nº de Resolución: 860/2013 Procedimiento: SOCIAL Ponente: IGNACIO MORENO GONZALEZ-ALLER Tipo de Resolución: Sentencia. Disponível em <http://www.poderjudicial.es> Acesso em abril de 2015.

[8] NERY JUNIOR, Neslon. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 4 ed. ver., atual e ampl.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 848

[9] NETO, Celio Pereira Oliveira Neto. Liberdade de Trabalho e a Cláusula de Não Concorrência. ALMEIDA, Renato Rua de (Coord.). Direitos Laborais Inespecíficos: os direitos gerais de cidadania nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2012. p. 78

[10] OLIVEIRA NETO, Celio Pereira. Cláusula de não concorrência no contrato de emprego: efeitos do princípio da proporcionalidade. 2013. 188 f. Dissertação de Mestrado para título de Mestre em Direito do Trabalho. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2013 apud OLIVEIRA, Oris de. A exclusão da concorrência no contrato de trabalho. São Paulo: LTr, 2005. P. 149 e 154

[11] Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/WEBTEXT/29744/64852/S92DOM01.HTM>  – acesso em Abril de 2015